I
Andante revela em sua tessitura formas minuciosas e contextualizadas de linguagens próprias de uma urbanidade plástica em pinacotecas de última geração. Signos que adentram avenidas povoadas de lembranças, ruas de visagens cujos transeuntes provocam reflexões para quem chega a uma megalópole descontinuada de poesia e música que desaparecem subitamente com sirenes, alarmes, buzinas, britadeiras, megafones, freadas, brecadas e gritos perdidos de alguém procurando um lugar desconhecido de todos. Eduardo Candido conhece essas ruas que aparecem subitamente e aquelas mais antigas que encontrou nesse ritmo de “caminhante que sonha, um sonho em sua plenitude sabendo que é preciso sonhar mais”, e segue seu destino de dragão afoito pelas alamedas, ruas e avenidas, catalogando pensamentos, lembranças, amores, saudades e as teimosias de continuar fiel ao seu amor, puro, diferente, único e verdadeiro.
Andante é, por essência, essa música que brota de uma orquestra de jovens instrumentistas sem medo da vida. Jovens que olham à frente sem temer distâncias, que colocam a mão no horizonte e plantam esperança e colhem sonhos. Colher sonhos é talento de poeta, colher esperança e plantar fé parecem ser dons de poeta ou profeta. Eduardo Candido tira o que está oculto do horizonte e vê no coração do presente o tempo certo dessa colheita, perscruta a seara, separa o trigo e as sementes que deve guardar para a próxima vez.
Berço é isso mesmo. A poesia de que vem desse jovem poeta está em um lugar muito especial, está no coração de sua família. Ali o poeta engendra seus desenhos de escritor, organiza sua agenda de temas, escreve as palavras que estavam guardadas para que Eclesiastes as revelasse. Um tempo para tudo! E assim o poeta vai, confiante, escrevinhando suas partituras, já que Andante nasceu da música da vida, da necessidade de uma trilha sonora para um filme imaginário, mas, convenhamos, nasceu da verdade de uma realidade, a sua, por uma consciência de mundo!
Eduardo Candido encontra palavras como faz o garimpeiro com sua bateia em movimentos de bailarino, ouvindo uma música além, muito além, separa os cascalhos que vão arredando-arredando, deixando que os diamantes deem sinal de que ali estão e precisam ainda ser lapidados. Candido sabe disso, por esse motivo tem o cuidado com cada gema, o cuidado do ourives, o cuidado de quem vai buscar na inspiração seu Autor, na ideia, seu sentido, no pensamento, seu objetivo, no ato, sua realização de homem, filho, amigo e poeta.
Eduardo Candido trabalha bem com os elementares, resgata do silêncio e do oculto algo que mais parece amálgama e funde poesia & realidade como fazem os artistas que fundem ouro e prata em ligas de aliança para expressar a importância da fidelidade, zelo e amor à Vida. E, nessa relação com a vida, sem desprezar a competência de cada signo dos seus textos, vai tecendo a renda com fios de linho branco que só poderá ser usada quando seu leitor tiver consciência de que esse mesmo fio pode ser a teia que o levará à luz do seu eu-ser-mundo no momento mais surpreendente, aquele em que ele, seu leitor, estiver só, contíguo ao silêncio (se é que se pode dizer assim das palavras que nos espiam, como se pedissem para ser entendidas, absorvidas como o beijo de quem amamos. E elas ali, dispostas em regras, usos e costumes, exigindo contextualização, e nós, descontextualizados pelo cansaço que a rotina dia a dia nos impõe e a cada instante, cada vez mais nos distanciamos no hipertexto e na polissemia de outros discursos sem eiras para o signo que há pouco tentávamos digerir como se fosse uma trufa de chocolate com recheio de cajá e aluar de festa junina) que o espreita desafiando-o a sair, a passear em jangadas-mônicas que soçobram em mares alencarinos. Entretanto, por estar no mar, é paisagem de um horizonte que precisa ser mensurado e interpretado pelo leitor de Andante, instigado pelo poeta a provar o chocolate amargo com noventa por cento de pureza de brasilidade.
O Poeta visto por Israel Veras
II
Eduardo Candido Gomes desvela ao leitor o sentido oculto no trecho de suas incursões entre o adágio e o alegro de suas sensações no cotidiano. Situa a realidade nesse espaço-tempo e torna o presente vivo, em andamento e aberto à vida. Sua tessitura textual desata silêncios e imagens ocultas em horizontes que só se podem olhar. Ver e sentir a vida são propostas do poeta como em “Adágio” e “Alegro” onde, verdade x realidade constitui suas reflexões e sua curiosidade diante da complexidade urbana. Essa contemplação é o “andante” no largo dos signos em busca daquele que o fará enquanto escritor, melhor interagir com seus semelhantes. É uma obra que reafirma a linguagem pela constituição, formulação e circulação, em que a memória e os sentidos se reafirmam. Eduardo Candido Gomes ascende por aclives de aquarelas para desvelar do caótico urbano o sentimento e o valor da essência humana. Pensar enquanto nos olhamos nas águas de um rio.
“… me abraço
para não me perder
das alamedas
alegres trianons…” in “No Coletivo, o Singular, Perfil II”.
E em “Perfil III” do mesmo poema, o poeta clama à ausência, pelo que há no interior dela, como se ela fosse um rio cujas águas não pudessem espelhar o firmamento com tudo o que há nele, inclusive o azul do céu. E indaga:
“e por que alguém
esquece o azul?!”
E, nessa reflexão, busca incessante do que deseja, pensa e procura em sua urbanidade solitária uma resposta às suas incontidas insatisfações. E interroga:
“Por que alguém deseja
O que nunca experimentou?!”
Parece-nos querer conformar racional e irracional, querer mensurar o que há entre uma palavra e outra que ele mesmo pronuncie, que ele mesmo, o poeta, fale para si mesmo, invocando a consciência de mundo para não se perder no caótico de uma megalópole sem azuis, sem estrelas, sem sonhos. E como último recurso, finalmente, evoca sua memória de longo prazo:
“Keats me dirá
mais tarde”
Assim Eduardo Candido Gomes vai compondo seu Andante, o tomo, desvelando a música da vida sem executá-la, sem ousar erguer a batuta em gestos heroicos, híbridos, sígnicos (SIP*), em desafio ao runrunzinar de veículos de suas avenidas e alamedas tão literárias quanto intensas de recursos e desafios aos urbanistas para torná-las viáveis à sobrevivência que deve ser tão ousada quanto:
“Uma lágrima ferina e rubra… (…)
(…) em silêncio, macerada, água do poço de Jacó.”
Mas essa mesma urbanidade caótica revela um imaginário que ultrapassa os sonhos e fere a realidade:
“(…) E então senta-se o menino, numa madrugada trivial (…)
para assim tentar compreender de onde vem a sua essência(…)” in “Resumos de uma vida, I Tempo”.
Em “III Tempo de Resumos de uma Vida”, desenha o tempo recriando um personagem ora escondido, uma figura buliçosa que cutuca
“sua intimidade caótica e depressiva”
no entanto, mergulha na imaginação e recria o presente do presente em gestos comunicativos,
“mas calado; extrovertido, porém tímido; feliz, todavia mofino.”
Parecem-nos contraditório, o autor, o personagem por ele recriado, seus registros que não o tornam diferente da desordem aparente da Pauliceia desvairada onde vive, trabalha, sonha, cria e reflete nesse aglomerado sobre distância, ausências e solidão.
O poeta lida com a diversidade com a atitude de quem
“(…) resgata o inocente
de tudo o que se queima
em pecado.” In “Lua Cheia, II Gesto”.
Essa inocência permeia seu dia a dia, suas relações, suas tarefas de “roteirista” de filmes, em que ele é personagem, roteirista, diretor e ator de uma grande realidade, sua própria vida conforme “Rumo a Velha infância”, poema XII:
“Eu era o roteirista, diretor e ator
de um filme que continua
sendo exibido em meus olhos…”
Essa circunstância o torna “produtor” da maior história que será possível contar, a de um tempo em que o poeta, o homem, o espectador e o contador de histórias mergulha em seu “eu-ser-mundo” para submergir refeito de um sonho, o sonho que não se pode sonhar só, parafraseando Fernando Pessoa. “Há que se sonhar um sonho inteiro na sua própria plenitude” (Ponte, 2002), como o faz na verdade e na realidade.
O poeta, “rasga a frase” possivelmente indicando-nos suas congruências ou contestações diante do constructo sociocultural onde habita com suas mazelas. E nos aponta:
“O filme às vezes
musical de janelas semiabertas
com maestros ocultos
e ocupados em rotinas
familiares”.
Dessa forma o autor se renova, se reencontra e se reflete em vidraças, molhadas pelos zeladores, ou suadas pelo peso das estruturas, como se fosse uma lanterna com seu foco pálido diante de um anoitecer que ainda não se consumou. E nós, leitores, somos conduzidos à cena:
“e a palavra leva-me por lugares
há muito esquecidos em mim”.
Até porque, esses lugares que o poeta exibe em sua película estão imersos em suas memórias, as quais são estruturas de suas afirmações diante do testemunho que dá a própria vida.
Sentimos que seus títulos parecem querer demonstrar uma infinidade de nuances, ou complexidades dissolutas mensuradas a partir da leitura de mundo que faz dos universos que o circunda.
De repente a realidade desponta e redesenha a trajetória de suas ideias, pensamentos e atos:
“(…) acordar carente,
Jovem, vívido em saudades!” in “Hoje”.
Dessa forma desenha os perfis que compõem sua imaginação e a realidade de sua literatura:
“Viver assim navegante,
Maternal renascença
De nós mesmos,
(…) a viver e viver e viver (…)
Inteiro. In “Perfil”.
In “Medo”, essas mesmas perspectivas se manifestam de modo frontal com a verdade:
“Aprendemos da vida, dos erros, dos caminhos antigos,
o desenho do voo, a força interior, (…)
(…) e ficamos eternamente esperando.”
O poema “Andante” tece uma malha que une e separa as margens de um rio, o rio de sua poesia. Rio cujas águas são transparentes sob o sol que às vezes se oculta para emprestar mistérios e revelar forças diferentes que constituem a vida. O rio de Andante (o livro) lembra-nos Heráclito e seus mistérios. Temos que ficar em uma das margens e comtemplar o rio de palavras que passam, enquanto a outra margem parece apenas um sonho possível:
“Busco dominá-la, anestesiar-me
de insurgências que em mim ousam desafiar-me (…)”
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(…) tristeza e felicidade,
doce e amargo
de um interregno”.
Quem está na outra margem do rio de Andante pode encontrar a Caverna de Platão, enquanto os livros são debulhados em busca de identidades que possam compor o elenco que encenará a grande peça filosófica diante da realidade de quem olha o mar onde desemboca esse rio em pleno século XXI. Um rio que tenta se libertar “dos liames pegajosos da ilusão”, lugares por vezes “onde mãos ilibadas e olhos cativantes modulam a perfídia”. Um rio poluído de imagens, sons, gestos, ícones, ritmos que reforçam a correnteza e a embocadura dando lugar à falta de fé e esperança.
Coerente, o poeta reafirma que o mar é o ponto de encontro de “Andante”, o poema, peregrino, transeunte em Andante, o livro, que tem como metáfora o mar onde o poeta andante e o mar onde navega vão se construindo à medida que o poeta olha, vê, sente e atribui sentidos aos signos que ele descobre e cria a sua arte de escrever, quer sejam roteiros para as artes cênicas, quer sejam notícias para o seu blog, ou poemas para seu novo livro, Sangria, ou seus artigos acadêmicos para o curso de economia na PUC-SP.
Mais coerente é impossível, visto que seus projetos focados em cultura são de cultura da educação e de educação da cultura, fundamentados na Biopsicoética. É preciso esclarecer, entretanto, que Eduardo Candido testa todas as possibilidades, todas a realidades e verdades de seus experimentos e estudos. Apropria-se de materiais diversos, documenta, registra, recria, adapta projetos, escreve, reescreve, verifica dados, decodifica informações catalogadas e, finalmente, dá o primeiro passo rumo aos seus objetivos, nada comuns, sempre inolvidáveis e empiricamente edificados sob a luz do amor ao próximo, por isso sua poesia é autêntica, vivida, experimentada.
Eduardo Candido desenha seu caminho sem apostas ou superstições. Ele é como o pescador que conhece o lugar onde atirar sua tarrafa. Tem as dimensões do lance, da moldura, do quadro, sabe que devolverá alguns pescados para o lugar de onde vieram. Sabe que as palavras, por vezes, fisgam o indesejável, por isso mesmo não se incomoda de ser gentil com naturalidade, não tem pressa, sabe que o importante é a interação, o convívio saudável, a dignidade humana. Deixa em liberdade o leitor, para que possa com ele, o poeta, à beira do rio, pescar todos os cardumes de estrelas da vida.
Andante é obra “forjada às luzes do asfalto”, eco do maior grito bradado da imaginação, tecido intratextual da vida, onde realidade e verdade são pontos de encontro, choque e ruptura de vulcões que desafiam os pilares mais escondidos dos “eus”. Sua urdidura é uma luz amarela da vida inteira, parafraseando Bandeira, que emerge uns cem números de vezes (ideados) pelas alternativas propostas, pelos voláteis pensamentos de quem transita pela eternidade de um instante, de quem não imagina Deus, de quem não ousa senão ser o que importa: “um sonho inteiro na sua plenitude” na realidade de cada dia do pão nosso.
Finalmente, Eduardo Candido Gomes exercita sua consciência de mundo, decodificando o que encontrou na botija. Não podemos prever suas ideias, seus pensamentos e atos; em contrapartida, podemos ler, ouvir e perscrutar sua inquietude e equilíbrio diante dos desafios que a vida lhe impõe e, como espectadores, observar como ele lida com a palavra para aproximar pessoas, reconstruir caminhos, desvelar a fé, mostrar na prática a esperança e falar sobre o segredo da semente que guarda em seu sorriso de poeta para distribuir a todos que dele se aproximam, quer seja pela leitura, escrita ou pelo seu gesto de semear, ainda que as sementes não caiam todas sobre o solo ideado para a grande colheita.
Diante desta reflexão, caio em mim. Penso que uma semente deve receber o máximo de intensidade possível de luz do sol. Deve ser guardada para a ocasião da semeadura em lugar fresco e seco para que se mantenha saudável. Assim, quando atirada à terra, possa absorver intensamente toda a água possível do coração que a recebeu, para que se nutra e possa germinar tenra e forte…
“O Verbo
ameaça, assola
e os amores fúteis
se evolam em aromas
de alamedas antigas.” In “Contemporâneo, Dizer IV”.
– Haveremos de colher. Plantamos!!!
– “Que as rosas floresçam…”
J. Camelo Ponte